ATENÇÃO: O Conto a seguir é uma obra ficcional voltada ao público adulto, sua interpretação está a mercê do leitor.
Nota: O tratamento para o Alcoolismo existe, e se você tem problemas com o Álcool, busque por ajuda.
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O autor deseja uma boa Leitura!
Att. Neres
A gata de Lancaster
Parte: I
Chego em casa ensopado após ter enfrentado uma verdadeira tempestade no caminho de volta do serviço, enquanto tiro as roupas molhadas e jogo no carpete, acendo a luz ao lado da porta, ela pisca várias vezes antes de iluminar a cozinha pequena e claustrofóbica que faz parte do meu lar, quando tiro minhas calças e jogo onde a camisa e o casaco estão, lanço meus cabelos medianos e ondulados para trás, usando apenas cueca boxer eu vou até a geladeira e fuço para saber o que ainda tenho para inventar uma gororoba, encontro alguns ovos e um resto de feijão, que ao sentir o odor forte jogo na pia sentindo o estômago revirar com o horrível cheiro de azedo, vou até meu telefone móvel e disco o número da pizzaria do adesivo que tenho grudado na porta da geladeira, enquanto o telefone bipa de modo lento, vou apanhando as roupas que deixei pelo chão e me dirijo à lavanderia.
Jogo as peças de roupa dentro da máquina de lavar, e ouço um barulho abafado dentro quando os panos atingem o fundo, do outro lado da linha uma voz já conhecida minha, e quando digo conhecida, digo realmente conhecida, pois já devo ter dormido pelo menos quinze vezes só esse mês com ela.
- Pizzaria Presente na Caixa, Maya Boa noite!
- Alô Maya! – me debruço dentro da máquina e no meio das roupas encontro um pacote fechado e retangular embalado e com um monte de selos grudados... – Uff!
- Ed? Está sem folego meu amor? – Maya fala e solta uma gargalhada zombeteira. – Qual o seu pedido querido?
Encaro o estranho embrulho enquanto digo...
- O de sempre. – Maya bufa no telefone.
- Não cansa de comer frango com catupiry Ed?
- Não. – Respondo – Por que acha que ainda estou comendo você?
- Você é um canalha! – Dou um sorriso e pela risada no telefone, sei que ela fez a mesma coisa do outro lado. – Hoje vamos fechar mais cedo por conta da chuva, eu mesma posso levar sua pizza... E se não se importar...
- Sem problema. – Reviro o embrulho, ele tem inúmeros selos de vários lugares do mundo. E boa parte deles estão bem desgastados. – Você pode dormir comigo, eu sei que você vai adorar, vou desligar, acabei de receber um pacote estranho!
- Como assim?
- Quando chegar você vê... Não tem destinatário.
- Hum, estranho... Pode ter sido um engano.
- Talvez... Depois nos falamos, beijo.
- Beijo, acho que em uma hora eu chego, esteja limpo e quente, parece que pode nevar hoje.
- Sim, pode deixar – Respondo mais para mim mesmo, o pacote é mais ou menos pesado, talvez seja uma bíblia pelo formato e peso que tem.
Desligo o telefone, e coloco o pacote retangular sobre a mesa da cozinha, encarando-o... Aparentemente é um livro, mas só irei abrir depois do banho, já começo a sentir meus dedos dos pés trincando de frio. Sinto um leve calor repentino na minha canela, de sobressalto eu pulo da cadeira e olho para os meus pés.
- Puta que pariu!... Que susto. – Fito os olhos de cor diferentes da gata da vizinha do último andar do prédio... Gata filha da puta, ela sempre entra por algum lugar que não faço ideia. Me abaixo fazendo um afago atrás das orelhas dela.
- Menina, você vai acabar matando alguém de susto ainda sua arrombadinha!
Dou um suspiro profundo ouvindo-a ronronar, sinto um arrepio na nuca, viro as costas e me dirijo para o banheiro ignorando a gata, afinal, ela está mais acostumada com meu apartamento do que eu mesmo, entro no box e abro o chuveiro na água quente, quente no modo de dizer porque se fosse uma pessoa de pele sensível aqui no meu lugar, a pele já estaria derretendo.
Enquanto me lavo vou puxando da mente se eu fiz alguma compra online que justifique o pacote, mas não me recordo de nada.
Depois de sair do banho, me seco e me visto com uma camisa preta de manga longa, uma calça moletom também preta e calço meias aleatórias, uma preta e uma branca, volto para a cozinha e ligo meu aquecedor, que só lembrei que foi concertado quando o vi no canto da sala de estar.
Apanho meu maço de cigarros na gaveta de um pequeno criado mudo que está ao lado do aquecedor, enquanto acendo um apanho uma faca no balcão da pia, e me sento de frente para o pacote, dou um trago e enquanto solto a fumaça corto a embalagem dele, me deparando no interior do pacote com um caderno, a capa dele é preta com detalhes em dourado e prata, os detalhes aparentam ser aleatórios, mas focando um pouco o olhar, percebe-se que os ornamentos formam o rosto de um gato na capa... Ué, olho para os pés da cadeira, olho ao redor e encontro a gata deitada me encarando do outro lado da mesa. Dou de ombros e vou até o aquecedor para pegar o cinzeiro. Olho para ele, ao lado tem um cachimbo preto que tem um resto de maconha da noite anterior. Volto a olhar para a gata...
- Segredo nosso né? – Dou um sorriso tímido, pego o cachimbo e o isqueiro ao lado, me sento na mesma cadeira de antes, acendo o cachimbo e dou um trago forte enquanto olho para a gatinha preta que me encara com os olhos estranhos; um é amarelo e o outro vermelho. Nunca vi gatos com olhos vermelhos, mas quem liga?
Gatos me dão um pouco de medo desde a infância, só de lembrar o que meu tio fez com uma gata que apareceu na minha casa e me mordeu quando eu tinha cinco anos meu estômago revira, balanço a cabeça espantando a imagem dela com a cabeça rachada em dois quando ele a lançou de crânio no piso da sala. Dou um último trago no cachimbo e o coloco de lado.
Abro o caderno estranho na primeira página, tem um texto curtinho escrito:
“Se recebeu este diário, preste ATENÇÃO, você é dono dele, faça suas anotações antes que elas o encontrem!”
“PS: Não hesite em matar uma, caso encontre alguma!”
Olho com suspeita para o caderno...
- Que porra é essa? – Suspiro para mim mesmo e a gata do outro lado da mesa levanta as orelhas me encarando. – Nada. – Digo fazendo não com a cabeça e ignorando os olhos atentos da felina em mim.
Viro a página e me deparo com uma data um nome e logo abaixo um longo texto, escrito com uma caligrafia caprichosa e em uma língua estranha, contudo, minha dislexia ataca quando encaro o texto, como um truque de mágica eu vejo as letras se embaralhando, e se organizando, de modo que em alguns segundos, o imenso texto está completamente em português, pisco algumas vezes, é impossível que a maconha de já esteja no meu organismo, não tem como eu estar viajando dessa maneira... Foco a atenção no texto...
Jack – 1901
“Poucas pessoas na vida têm a oportunidade de ver ou interagir com um espécime de felino, que até hoje ouvi apenas cinco relatos durante tantos anos entrevistando pessoas que disseram ter passado por experiências com os tais animais, de todas as pessoas que já ouvi no decorrer de 20 anos de profissão investigativa, cinco foram os relatos de algo semelhante e apenas três deles compensam eu partilhar, dois desses casos foram de pessoas comuns, duas mulheres e a terceira é a minha própria história, por mais incrível que pareça, e por mais surreal que seja, espero que você leitor possa embarcar na pequena crônica que tenho para partilhar.”
“Esse é o último relato que farei antes de eu jogar esse manuscrito no mar e procurar um sanatório para me internar, quem sabe eu tenha a sorte de ser lobotomizado, se feito isso eu terei noites de sono mais tranquilas, e quem sabe assim eu morra feliz de saber que as gatas de Lancaster foram apagadas da minha mente, vamos lá então...”.
“O primeiro relato foi o que me fez buscar mais informações sobre os tais animais, e ao mesmo tempo foi o que me deixou apreensivo de se eu realmente queria me aprofundar nesse assunto, e o resultado você deve imaginar não é mesmo?”
“Estou me abrindo enquanto fumo um cigarro atrás do outro e já nem sinto mais gosto de nada, eu bebo a vigésima taça de vinho, ou será a décima? Nem sei mais! Bom, o primeiro relato me foi contado nos anos 1888, enquanto caminhava na praça central de Londres, ouvi um grito de mulher vindo de um beco escuro ao norte do grande relógio, eu pensei em ignorar o grito e ir para casa, mas meu instinto de boa pessoa falou mais alto.”
“Eu corri em direção ao beco do qual vinha o grito, enquanto sentia meu coração acelerar meu ar ia faltando, e o medo da cena que eu poderia ver ia enchendo minha mente e alagando minha racionalidade, quando dobrei a esquina, a cena que eu vi foi a mais incomum possível, era outono, e um famoso criminoso acabara de ganhar um pseudônimo, agora me falha a mente, mas era algo como Jhon estripa tripas ou algo do tipo, tenho álcool demais na mente agora, mas lembro com detalhes do que vi, eu encarei a rua pouco iluminada, e ao fundo dela, uma mulher com as vestes completamente destruídas estava agachada olhando para cima com olhar de medo, o que mais me chamava atenção na cena em questão não era nem a mulher, embora fosse bonita, jovem, e estava cercada por paredes vermelhas.”
“A princípio achei que fossem paredes daquela cor mesmo, mas pelo contraste e disformidade dos traços, saquei logo que a “tinta” usada estava fresca, era grossa demais para ser tinta e ao mesmo tempo espessa demais para ser um papel de parede, era sangue...”.
- Cacete! – Digo num tom mais alto do que eu gostaria, a gata me encara com uma feição de duvida no semblante... Dou de ombros – Nada...
Acendo um cigarro e continuo lendo...
“... Espesso e vivo, o dono daquele sangue todo era um pobre infeliz que se inspirou no assassino de prostitutas, e decidiu trilhar um caminho parecido, mas não aconteceu bem como ele imaginava, pois no relato nervoso e estranho da “vitima” em questão, assim que o meliante sacou uma faca para ela e a atacou, rasgando suas vestes, ela ouviu uma voz feminina sussurrando algo e aparentemente não só ela ouviu, mas o agressor também, e após um surto de ansiedade do rapaz que começou a tremer, a mulher viu o corpo do homem sendo distorcido de modo desumano, retorcendo como um boneco de borracha, os olhos dele brilhavam em roxo e branco e de um momento para o outro o corpo do agressor já não existia mais, e no seu lugar havia apenas um borrão vermelho, como se uma bomba atômica tivesse estourado por ali e apenas a mulher sobrou.”.
Sinto meus músculos relaxando, e ao mesmo tempo começo a imaginar com mais detalhes o relato, se mais cedo a maconha não estava ativa em mim, agora com certeza está, sou uma gargalhada nervosa de alguns minutos, e encaro os olhos atentos da gatinha nos meus, não sei se estou viajando muito, posso jurar que a gata está pelo menos duas vezes maior do que parece!... Foco novamente no caderno...
“Como bom detetive que sou, saquei meu bloco de notas e acalmei-a tentando manter ela bem enquanto ela me relatava sua história; quando o homem sacou a faca para estripa-la, ela me disse que antes de me ver do outro lado do beco, um felino enorme, pelo menos cinco vezes maior do que um gato comum e de olhos brilhantes acesos como faróis estava atrás do homem antes de ele virar uma mancha de sangue no chão e as paredes ficarem vermelhas e escorrendo.”
- Maluco, essa mina com certeza estava chapada!... – Gargalho comigo mesmo tentando manter o foco, mas tá difícil. Seco as lágrimas que escorrem...
“Falei para a dama me detalhar como era o tal gato, e ela só me disse que era uma fêmea, pois estava barriguda e tinha mamas protuberantes, após o desaparecimento do homem a gata pulou na parede do beco e fez um zigue e zague nas paredes paralelas até chegar ao topo de uma das lajes, olhou para ela lá de cima, em sua mente ela ouviu uma voz de mulher dizendo que estava tudo bem, e depois disso a gata sumiu, quase no mesmo instante eu apareci na extremidade do beco, levei a moça para a delegacia mais próxima e a deixei por lá, nunca mais a vi, e pelo visto sua vida pode ter sido duradoura e próspera já que muitos anos depois a recepcionista do prédio onde moro me disse que um jovem de uns vinte anos havia deixado uma encomenda para mim na recepção, junto um bilhete de agradecimento por ter salvado sua mãe.”
“Demorei algum tempo para me lembrar daquela moça, mas quando abri a encomenda e vi que o presente era um gato da sorte japonês de cor vermelha, logo me lembrei daquela fatídica noite, e entendi que o rapaz era o filho da tal mulher do beco.”
Parte II
Marias – 1967
“O segundo relato chegou até mim por intermédio de um jovem homem trans que morava perto de Guanajuato no México, durante uma viagem que eu fazia para a conclusão do meu tardio, porém necessário curso de jornalismo, eu estava fazendo a cobertura oculta da grande mídia para a minha empresa relatando misteriosos assassinatos de algumas prostitutas durante meu estágio no jornal Vísser, e tirei um tempo para relaxar na linda cidade, enquanto caminhava fumando perto da catedral da cidade, vi o rapaz em questão entrando na basílica. E seu estado era deplorável, à distância eu observei que ele estava coberto de sangue e inquieto, estranhamente enquanto eu o via correndo desesperado para o edifício, me lembrei não intencionalmente do beco em Londres, minha curiosidade falou mais alto que meu bom senso, então segui seu rastro com meu inseparável bloco de notas em mãos, e a merda de uma caneta que não funcionava direito, então você, leitor, provavelmente vai notar que durante esse relato, terá pedaços do texto que estão rasurados, mas deixarei o mais claro possível para a leitura, já que não tenho interesse algum em repassar esse conteúdo para um outro meio de leitura... Sei que estou contando, mas você sabe, estar bêbado é péssimo, e escrever nessa situação é ainda pior, só não estou errando por que fiz anos e anos de caligrafia com as freiras que me obrigavam a aprender as palavras, então está no meu sangue ser um puta chato com a escrita... Enfim...”
“Na porta da basílica eu notei que a maçaneta do prédio estava imunda de sangue seco, como se tivesse estado parado ali por semanas, ignorei a sujeira e entrei no local, o lugar estava vazio, repleto de serenidade e iluminado como nunca vi em lugar algum, era fantástico, a beleza era algo difícil de avistar em outros lugares do mundo, pelo menos para mim; nascido e criado num convento de freiras da minha cidade natal, nada era mais belo aos meus olhos do que uma arquitetura pontifica como aquela era, não vou enrolar dando detalhes sobre o lugar, mas era magnifico.”
“Entrando no lugar, avistei o jovem ajoelhado em frente ao altar, estava orando como um lunático, sussurrando palavras e fazendo o sinal da cruz junto as palavras recitadas de modo tão intenso, que demorei um certo tempo para me aproximar pensando que eu poderia acabar ajoelhando e orando junto, quando cheguei perto ele sacou de uma bainha presa à perna uma adaga, me ameaçando de morte caso eu me aproximasse mais, com um certo esforço consegui fazê-lo se acalmar e abaixar a arma branca.”
“Me sentei junto ao rapaz e ofereci minha garrafa de água recém enchida, o desgraçado tomou numa velocidade feroz, só faltou mastigar a garrafa junto...”
Gargalho com o comentário e ágata novamente me encara com olhar de reprovação, mostro o dedo do meio para ela, ela abaixa uma das orelhas e me fita com severidade, sob seu olhar eu me sinto mal, então peço desculpa para ela e volto a olhar para o caderno...
“... Ele devolveu o recipiente para mim e eu o guardei, pedindo que ele me dissesse o que houve com ele, mais calmo ele me explicou, ele estava indo para o serviço, um prostibulo que havia conhecido há pouco, clientes exóticos apareciam por lá com frequência, procurando por ele em segredo, durante a realização das fantasias de um cliente já fiel, ele relatou que viu uma silhueta feminina atrás das cortinas da cama e de uma hora para a outra o homem que estava encima de suas costas explodiu, junto com mais duas pessoas que estavam observando o casal transando, ele ficou em choque, saiu da cama as pressas, ele tremia enquanto contava essa parte, e o pior de tudo, as duas pessoas que foram condenadas ao mesmo destino do cliente, eram as patroas do infeliz menino, meses depois desse pequeno ocorrido sangrento, foi descoberto que as donas do estabelecimento pretendiam iniciar uma seita seguindo os passos de La Poquiachis, foram achados documentos das donas do prostibulo, e aparentemente as mulheres fariam do jovem rapaz a primeira de sabe-se lá quantas vitimas em potencial, essa parte pode ser macabra, de fato, mas o que mais me chamou atenção no relato, foi o que o jovem rapaz relatou em seguida.”
“Ele disse que ao sair do prostibulo nervosamente, na entrada do local estranhamente vazio já que era um chamariz de pessoas normalmente, ele aparentemente viu na encosta da parede em frente, uma mulher linda de curvas marcadas e nua, se transformando diante de seus olhos em uma gata enorme e sombria, que logo após a transformação escalou a parede, e sumiu do seu campo de visão...”
Ouço três batidas fortes na porta, e me assusto, levantando da cadeira de sobressalto, a gata na mesa mia nervosamente pelo susto que tomou, me analisando friamente com seus olhos analíticos.
- Desculpa!... – Digo para a gatinha enquanto sigo em direção à porta andando de costas, magnetizado pelo caderno em cima da mesa... Meu Deus, não é possível que já se passou uma hora!
Abro a porta nervosamente, e encaro uma inundada Maya sobre meu tapete de boas vindas com uma caixa de pizza quadrada na palma direita.
- Meu pai do céu! – Diz ela entrando às pressas, me entregando a pizza e indo direto para o banheiro. – Vou ir logo pro banho porque estou congelando!.. Que cheiro de erva Edgard, não cansa de chapar não porra?
Balanço a cabeça negativamente, abro a caixa da pizza e surrupio um pedaço dela, ouço o barulho do chuveiro ligando, como um viciado no caderno eu volto pro meu assento e continuo lendo as palavras realmente muito rasuradas dele...
“O jovem rapaz estava tão confuso e com medo que procurou a basílica para orar e pedir sanidade para Deus, pois achou que estava enlouquecendo, após uma longa conversa com ele; descobri bastante sobre o rapaz, foi abandonado pela família por sua opção sexual, o que é uma idiotice sem tamanho, mas cada família sabe o que faz, quem irá jugar as atitudes dessa família imbecil será outro, e não eu.”
“Descobri também que o único emprego que ele conseguiu foi ali naquele lugar, me dispus a ajudá-lo entregando o contato de um grande amigo empresário, que contratava pessoas como ele, em situação critica, sem família e trabalhando em condições difíceis, ele só precisaria mudar de país e conversar com meu amigo... Claro, junto com o contato também passei para ele o numero de um amigo meu que era psicólogo para tratar aquele trauma.”
“Ele com certeza iria precisar de um tratamento, o garoto estava em choque quando o vi pela primeira vez, mas com uma boa conversa percebi que ele era do bem, o acompanhei até um hotel próximo, paguei sua estadia para que no dia seguinte ele seguisse os conselhos que eu lhe dei, incrivelmente ele confiou em mim, seguiu minhas palavras, e meses depois quando voltei para a minha cidade natal, na minha caixa de correios encontrei uma carta dele, agradecendo imensamente por ter lhe dado um caminho diferente do que ele estava seguindo, agora ele era copeiro em um dos bares do meu amigo, e estava na posição de líder de atendimento no estabelecimento, fiquei feliz, imensamente feliz por ele, porém aquela carta me fez me lembrar do fim da noite em que o conheci, e isso me fez ficar nervoso e inquieto, lembro-me como se fosse recente, após deixa-lo no hotel, já era madrugada, eu estava voltando para o meu apartamento alugado pelo jornal, e na última rua antes da esquina que dava para o hall de entrada do prédio, eu vi pela primeira vez, uma Gata de Lancaster, e jamais esqueci como...”
Um barulho horrendo de porta batendo ecoa pelo meu apartamento, e mais uma vez eu salto da cadeira, deixando o resto do pedaço de pizza que eu comia cair no chão da cozinha, assustando a gata de novo, dessa vez ela faz um barulho asco de ameaça, claramente um palavrão felino, eu encaro ela com olhar de desculpa e em seguida para a fonte do barulho...
- Desculpa, a porta escapou da minha mão. – Maya está de toalha e esfumaçando na porta do banheiro, eu com a mão no meio do peito e sentindo o coração na boca, tenho que usar uma força imensurável para não manda-la tomar naquele lugar por quase me enfartar, mas consigo me controlar, apanho um cigarro novo e acendo, vasculho a estante procurando um prato para servir mais um pedaço de pizza e volto a me sentar na cadeira enquanto coloco o pedaço no prato.
“... ela foi o animal mais magnifico que já vi em minha vida, com toda certeza.”
“Era uma felina preta, com orelhas de lince, algumas vezes maior do que um gato comum, os olhos eram inteiramente brancos e magnéticos.”
Tiro os olhos do caderno, encaro a gata da vizinha, ela boceja se espreguiça lentamente, e volta a se deitar novamente, ela me encara com os olhos estranhos atenciosamente. Franzo meus olhos encarando ela, não sei se estou viajando ainda, mas essa gata parece mesmo estar maior, ela tem um olhar magnético também, e ela tem uma cara de uma gata que mataria alguém... Aliás todo gato é maluco e do mal! Tramando nas sombras a tomada das casas dos seus donos e a dominação mundial depois que alguém servir a ração e...
- Tá viajando né? – Maya fala e eu olho para ela que agora está vestida e encostada no portal de entrada do meu quarto, de braços cruzados me fitando com uma cara de deboche – Tá encarando essa gata há quinze minutos doidão!
Ela vem até a pizza, pega um pedaço, apanha o maço e o isqueiro, dá uma encarada no caderno aberto sobre a mesa, abre um sorriso e volta para o quarto rindo da minha cara...
- Vou me masturbar, pelo visto sua atenção hoje é só da gata e do caderno em branco né maconheiro?
Dou um sorriso azedo, ela deve estar maluca, o caderno não está em branco, encaro a bela caligrafia em caneta preta e com diversas falhas na tinta.
- Tá doida é?
- Aham, eu que sou doida! – Ela gargalha do quarto – Já falei para você parar de fumar. Seus neurônios estão assados já!
Dou de ombros, volto o olhar para o caderno balançando a cabeça em negativa.
- Essa mulher é louca... – sussurro para a gatinha, não sei se é da minha cabeça, mas parece que ela assente concordando comigo, eu fito ela mais atentamente... Ela continua me encarando paradinha. – Vish, tá ficando doido também Edgard?
Balanço a cabeça em negativa encarando o caderno de novo...
“Ela estava parada, estável, me deixando congelado enquanto eu sentia medo até de respirar, esses bichos aparentemente matavam sem tocar, e matavam sem dó também, em palavras grosseiras, eu estava de bexiga vazia, e a minha sorte foi essa, pois enquanto eu me mantinha estático, ela começou a se mexer vindo em minha direção, se aproximando e crescendo, e quando digo crescendo é realmente crescendo, a ponto de os olhos brancos dela estarem a altura dos meus próprios olhos, eu sou um homem alto, tenho um metro e oitenta e nove, e aquele monstro estava cara a cara comigo, sobre as quatro patas, não sentia cheiro algum, a névoa estava densa, porém imóvel na frente do focinho sombrio, cheguei a conclusão que elas não respiravam, pelo menos àquela não precisava.”
“Não faço a mínima ideia de como me mantive consciente, ainda mais na hora que ouvi uma voz de mulher conversando comigo, dentro da minha cabeça, senti meu coração pulsando até nos meus cabelos, a voz em minha mente começou a dizer inúmeras informações sobre casos misteriosos e horrendos envolvendo assassinos em série pelo mundo, tanto indivíduos como grupos, citando diversos nomes e países, a lista era enorme, e a cada nome que ela dizia, um flash de memória de alguns assassinatos passavam em meus olhos numa velocidade anormal, e a cada caso mais medo eu tinha do que iria me acontecer ao final da nossa “Conversa”, eu tentava impedir meus pensamentos para não ouvi-la e barrar o controle que ela parecia ter da parte do meu cérebro responsável por mostrar vividamente o que veio a seguir, todas as tentativas foram em vão...”.
Parte III
Edgard – 1996?
“Abdullah Shah – Afeganistão, Florencio Fernández – Argentina, Kathleen Folbig e John Lynch – Austrália, Lainz Angels – Áustria, Ershad Sikder – Bangladesh, Marc Dutroux – Bélgica, Ramiro Artieda – Bolívia, José Augusto do Amaral, Marcelo Costa de Andrade, Francisco de Assis Pereira e José Vicente Matias – Brasil, Joseph LaPage – Canadá, Luis Garavito – Colômbia, Jairo Humberto – Equador, Charles Quansah – Gana, Antonis Daglis – Grécia, Angel Makers – Hungria, Darkey Kelly – Irlanda, Sonya Caleffi – Itália, Sachiko Eto e Miyuki Ishikawa – Japão, Yuri Ivanov – Cazaquistão, Baba Anujka – Sérvia, Jack Mogale – África do Sul, Yoo Young-Chul – Coreia do Sul, Oleksandr Berlizov – Ucrânia, Peter Bryan – Reino Unido, Theodore Robert Bundy, John Gacy, Jeffrey Dahmer e Aileen Wuornos – Estados Unidos...”
“A Lista é realmente imensa, e eu não estou relatando nem metade do que eu vi e presenciei, após anos preso naquele filme de horrores, eu me dei conta de que eu estava deitado sobre a minha cama de hotel, olhei para o relógio aparentemente quebrado, solicitei um serviço de quarto, pedi cigarros e uma garrafa de vinho tinto, até então eu não bebia tanto, comecei ali, e jamais parei, na mesma madrugada notei que não havia passado nem uma hora desde a minha despedida do rapaz da basílica até a terceira garrafa que pedi, dentro dos relatos da gata, ela explicava que as datas dos ocorridos eram abrangentes, deduzi que eram dos três períodos de tempo, ao fim dos meus sonhos partilhados na companhia da felina, que acompanhava cada caso como se fosse minha sombra, eu acordei aqui, e sobre minha cama estava este caderno que está em suas mãos agora, lá pela sétima garrafa, uma atendente diferente veio me servir, e a ela eu perguntei como eu havia chegado mais cedo, ela disse que cheguei acompanhado de uma lindíssima e incomum mulher vestida de preto, com olhos de cores diferentes, ela subiu comigo para o quarto, me depositou em minha cama e não passou pela recepção para sair do prédio”...
“Esses incontáveis casos infames inspiraram outros muitos psicopatas, doentes mentais, lideres religiosos, políticos, enfermeiras, médicos medíocres e genais, empresários, prostitutas, jovens e velhos e muito mais, eles eram impedidos de iniciar suas ações pelas gatas geradas por aquela gigante, elas apagavam as memorias das vitimas, mas falhavam nessa missão quando uma testemunha interagia, eu já estava testemunhando um segundo caso, e então a entidade delas achou melhor intervir, pois eu era uma espécie de escolhido que passaria a informação da existência desses animais que se transformavam em mulheres e eram telepáticos, em dado momento, ela perguntou qual era a minha idade, e para a minha surpresa, eu não soube responder, e até hoje não sei, eu estou ligado a elas, e esse meu “Cargo” está diretamente ligado a elas, eu não envelheço há muito tempo, presenciei mais alguns casos envolvendo elas, porém sem entender porque de eu ser o escolhido.”
“Há alguns dias eu pedi demissão do já centenário jornal onde iniciei minha carreira, e estou exausto de não poder descansar em paz, então... Edgard...”
Sinto meu coração acelerar ao ler meu nome...
“... Espero que seja mais cuidadoso do que eu fui em minha vida, e tenha cabeça para administrar o cargo de contador de histórias com responsabilidade, e a melhor forma de lidar com esse fardo, é deixar que outro o assuma. como eu disse no inicio, se encontrar uma gata de Lancaster, não hesite em matá-la, pois se ela te morder, ela irá te fazer um imortal, e você estará preso para sempre a esses demônios do bem, não sei quantos Hitlers, Stalins, Kims e desgraçados desumanos ainda estão por vir, mas faça diferente de mim, se tem um relato a declarar, escreva aqui, e siga sua vida matando felinas, que irão com certeza te encontrar, e irão te fazer passar pelo que passei, pela loucura, pela insanidade de ter cenas horríveis em seus sonhos, e insônias por anos a fio, zele pelo seu bem estar, e deixe que as gatas façam o trabalho delas, pois sem elas, o mundo seria ainda pior do que já é, e você no fim das contas será só mais um alucinado, drogado e fugitivo da realidade em que se encontra, nesse momento irei jogar esse manuscrito no oceano, ele o encontrará de alguma maneira.”
“Irei para minha casa, ainda não decidi o que farei comigo, mas comprei uma corda há alguns anos, guardei para uma necessidade, e acho que chegou a hora de usá-la...”
Viro a pagina, está vazia do outro lado, folheio o caderno mais para frente, tudo em branco... Fecho o caderno sentindo meus dedos tremendo.
Olho para a gata em cima da mesa, ela está dormindo e respirando baixinho, encaro ela por uns bons minutos, com as mãos tremendo, pego um cigarro do maço e acendo-o, isso só pode ser loucura! Eu não sou imortal, me lembro da minha data de nascimento, né?... Isso só pode ser uma brincadeira de mal gosto...
Levanto da cadeira, vou até o banheiro, urino e lavo minhas mãos e o rosto, não é possível que uma vida seja reduzida a apenas testemunhar assassinatos e desgraças, servir como um pergaminho de infelicidades, isso não faz sentido!... Mas também não faz sentido sair matando gatas que limpam o mundo de crápulas desalmados por aí só para não se ver preso a uma obrigação estranha de testemunhar tudo e apenas isso.
Olho meu reflexo no espelho, meus olhos ainda estão vermelhos, então sei que ainda estou chapando, solto uma risada, seja lá quem for o dono desse caderno, ele tem uma imaginação extremamente fértil, não existe essa bobagem toda, seco meu rosto na toalha e me viro para sair do banheiro, fecho a porta, encaro a mesa, e para a minha surpresa, não há mais uma gata ali... Há... Uma gata né porra, lógico! Até parece que iria ter uma mulher, dou mais uma risada ouvindo meus pensamentos indo longe na imaginação, rindo pacas, apago o cigarro no cinzeiro, estralo minhas costas, e apago a luz da cozinha, me dirijo para o quarto, e antes de passar pelo portal de entrada ouço uma voz de mulher que não é a de Maya sussurrando:
- Escolha sábia Ed.
Me viro para a cozinha sentindo o coração na garganta, na escuridão do aposento os olhos luminescentes da gata me encaram com atenção, deslizo até o interruptor sem piscar e vendo os olhos dela me acompanhando como se estivessem magnetizados em mim, ou os meus nos dela, coloco uma tremula mão no interruptor, acendo a luz, e como se fosse mágica, a silhueta felina com os olhos acesos desaparecem quando o cômodo está iluminado novamente.
- Meu Deus! – Sussurro para mim mesmo.
Meu coração está a ponto de entrar em colapso, quando sinto um roçar nas minhas pernas, dou um pulo para trás, olho para o chão.
- Gata filha da puta! – Ela roça nas minhas pernas ronronando, coloco a mão no peito, essa gata ainda vai me enfartar! Pego ela no colo, ela me encara com atenção enquanto eu acaricio suas orelhas, apago novamente a luz, vou para o quarto e coloco ela na janela onde ela geralmente dorme antes de voltar para a casa de sua dona pela manhã.
Acendo um ultimo cigarro antes de dormir e fico encarando ela deitada no parapeito sob a luz do luar, neve começa a cair lá fora, deito de lado para observar a beleza da felina, começo a sentir os olhos pesando, o cansaço me abatendo, antes de eu fechar os olhos e adormecer, ouço um pente cair do meu criado mudo, e uma mão acariciando meu rosto, antes de ver a silhueta de uma mulher nua pular pela janela aberta, e desaparecer.
- Eu disse que é melhor você parar de se drogar Ed. – Ouço a voz de Maya em minha mente. – Essa droga toda está te corroendo...
Dou uma risada nervosa, amanhã preciso ir ao meu fornecedor de drogas novamente... A final de contas, não tenho certeza alguma de que realmente nasci em 1996! E essa incerteza já perdura há algum tempo, desde que comecei a colocar essa merda de diário do lado de dentro da minha porta, torcendo para lembrar de tê-lo lido no dia anterior, mas nunca me lembro, só lembro de relance que esse maldito manuscrito chegou até mim pela primeira vez têm pelo menos vinte anos.
Fim.
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