top of page

O Homem de Três Olhos

Atualizado: 17 de dez. de 2021





O Homem de Três Olhos



Ao olhar para baixo sinto o enjoo tomando meus sentidos, meus olhos encaram a extensa avenida abaixo, eu estou no parapeito do terraço, cento e vinte andares acima do chão, trajando apenas um sobretudo surrado, e por baixo uma cueca box cor de vinho e meias brancas, eu encaro o chão lá em baixo, com imenso frio na barriga quando o vento gélido sopra a capa da vestimenta para trás descontroladamente, sem ideia alguma de como vim parar aqui em cima.

Eu respiro fundo, sentindo meus pulmões tremendo com o frio do ar, e ao mesmo tempo, noto que tudo não passa de um sonho lúcido, eu como verdadeiro viciado em adrenalina, pulo do parapeito, e me vejo caindo velozmente de encontro à calçada sem movimento de pedestres, antes de alcançar os primeiros cinco andares do imenso edifício, eu sorrio, e sentindo uma adrenalina crescente, meu corpo é lançado para cima, em direção ao céu, eu consigo voar! E não apenas isso, eu consigo controlar tudo ao meu redor, vegetação, tempo, objetos. Ao longe vejo um helicóptero sobrevoando baixo uma delegacia que pelo imenso movimento, só pode estar com um assassino de presidentes em seu interior.

Aponto o braço para a aeronave e com o estalar de dois dedos faço-a desaparecer, deixando chocado o público a baixo, com uma gargalhada contida eu dou um rasante passando pela multidão de pessoas, que encarando agora de perto, parecem não ter rostos, são apenas mascaras sem expressões.

Volto a me impulsionar para cima, planando enquanto adquiro altura no meu voo continuo.

Um enorme edifício de vidro está alguns metros à frente, antes que eu me choque contra ele, aponto minha mão direita em sua direção, e com o poder da minha lucidez, faço o prédio ganhar um enorme buraco em seu centro como se eu tivesse implantado um buraco negro nele, eu passo pela fenda, rindo para uma mulher que me encara com espanto enquanto ela trabalha no seu escritório de psicologia atendendo uma moça que está no divã olhando para o teto, do outro lado do prédio minha aventura voadora continua, pouso em cima de um muro, encarando o ambiente a minha volta, o ar é tão frio, mas não incomoda.

Dou uma olhada para baixo e me jogo novamente para o imenso vazio, dando um impulso psicológico para frente, e como um torpedo eu me lanço para uma floresta que só reparei existir agora, sobrevoando as copas das arvores, que conforme a densidade da floresta aumenta e mais altas vão ficando, no meio do imenso bosque que sobrevoo, vejo uma cabana no meio de uma clareira quase invisível de onde estou à distância, me aproximo e diminuo minha velocidade para admirar com mais calma os ambientes, vejo uma mulher conversando com um garoto de cabelos negros e olhos inocentes, ela oferece um doce para o menino, minha visão da cena é barrada pelo corpo de um pinheiro negro, e eu continuo meu tour voador ignorando todo o resto, metros abaixo, vejo um rapaz que está conversando sozinho, aliás, não completamente sozinho, aparentemente ele está discutindo com uma garrafa vermelha pelo que posso ver dessa distância, parece perturbado com algo, dou de ombros e mais para dentro do bosque, encontro uma nova clareira, que têm como chamariz uma enorme mansão de teto negro, que destoa do ambiente verde e laranja das folhas de inverno misturadas com as folhas que ainda não amadureceram na estação.

A mansão tem um enorme jardim rosado, e nele uma mulher pálida e muito linda, com olhos lilases brinca de pega-pega com uma garota jovem, aparenta ter nove anos ou menos, é pálida e tão bela quanto a mulher que a persegue com um sorriso maravilhoso nos lábios, acredito serem mãe e filha, tendo em vista que os lindos olhos são do mesmo tom lilás, suas aparências são humanas, mas pelo que vejo no rosto delas, acredito que não são tão humanas assim, se é que pode-se dizer isso.

Dou um supetão para a lateral, fazendo uma grande espiral, me manobra enquanto voo para longe daquele lado do bosque, vejo de relance um enorme e belo lobo rubro correndo atrás de um cervo também enorme, em uma caçada frenética, o lobo têm em seu encalço um gato lindo de orelhas de lince preto como breu, quase do mesmo tamanho da fera lupina em caçada. O gato para de repente e olha para cima, fixando os olhos nos meus, e do nada ele some... Até sonhos lúcidos conseguem ser confusos!

Muitos quilômetros depois dessa visão desaparecedora do felino, enxergo o final da floresta se aproximando, e uma cidade brilhante e sombria está à frente.

Sobrevoando essa cidade agora, encaro becos tranquilos, sem habitantes aparentemente, tirando o pouco movimento que consigo ver dentro de alguns lares de luzes fracas e foscas, um corvo cruza meu caminho no céu, me fazendo desequilibrar, meu coração acelera com o susto, eu o acompanho com o olhar enquanto fico de cabeça para baixo diminuindo minha velocidade consideravelmente, vendo-o pousar sobre uma persiana que está aberta, ele grasna e se senta, encarando alguém dentro do aposento, um homem em frente ao seu notebook tira a atenção da sua tela, e olha para fora, me encarando com olhos avermelhados, olheiras horríveis e aparentemente sereno com algo, seu rosto se ilumina com um sorriso simpático dirigido a mim, ele pisca com um dos olhos atrás das lentes transparentes de seus óculos redondos, eu retribuo o sorriso e ignorando meu quase assassino voador que parece ser seu animal de estimação, continuo minha viagem de frio na barriga constante, cortando a cidade voando levemente.

Mais para o sul vejo uma imensa mansão de luxo, que com certeza está tendo uma festança maravilhosa, entre as nuvens baixas e cinzas que se formam nessa parte do céu no qual estou me deslocando cuidadosamente, vejo que a piscina da mansão está colorida enquanto queima em laranja, roxo e vermelho, como se tivessem-na enchido com fogos de artificio, é estupendo, embora seja um pouco medonho pensar que tiraram toda água para encher de outra coisa, um mergulho nessa piscina seria infame, penso.

Ouço um barulho de água corrente muito forte crescendo, e ao encarar as nuvens que me cercam, noto que uma tremenda tempestade começa a me perseguir, eu uso minha consciência poderosa para tentar parar a chuva, mas estranhamente ela só aumenta, talvez seja minha bexiga cheia no mundo real que me causa essa sensação estranha, então, dou um impulso telepático para frente com tanta força, que começo a voar numa velocidade que nunca havia me deslocado antes em outros sonhos assim.

A chuva me persegue como se eu a atraísse magneticamente, em poucos minutos ela está por toda parte, me cercando, nuvens enegrecidas e cortadas por inúmeros relâmpagos, me observando, eu dou um forte impulso para cima, para além do céu onde as nuvens se aglomeram, e quando estou acima delas, vejo o sol pálido iluminando a parte de cima e mais clara das fofas, enquanto ouço o barulho mais fraco da tempestade que desagua violentamente na parte debaixo dessas mesmas nuvens que aqui, estão simplesmente serenas.

De repente, algo me chama a atenção, eu aperto os olhos para entender melhor o que aparentemente eu estou vendo, e custo a acreditar, que dois corpos alados e aparentemente humanoides a essa distância, estão se chocando violentamente enquanto voam de encontro um ao outro, trocando golpes intensos, um homem vestido de preto, com roupas coladas e brilhantes, com botas de couro de saltos finos e aparentemente desconfortáveis, o outro está com roupas frouxas e brancas de seda manchada de sangue em diversos cantos, o homem de branco exala uma aura de luz, que não deixa que eu veja seu rosto, ele possui pelo menos quatro pares de asas que se movem em conjunto fazendo manobras que mexem com meu sentimento de inveja.

O homem de preto – que só reparei agora que tem chifres enegrecidos entre os cabelos ondulantes e pretos como as vestes de couro – tem uma das suas asas que também são negras e estupendas, arrancada por uma investida cruel do outro celeste – Que sumiu quando mutilou o de preto. – e ele rodopia descontroladamente, indo para baixo com tanta velocidade que ele perfura uma das nuvens de chuva, e desaparece, deixando como se fosse um buraco de ralo no centro do algodão sujo, tento focar meus pensamentos para que minha lucidez retorne ao sonho e eu pare de ver coisas que aparentemente não estão sendo controladas por mim.

Respiro devagar, e me concentro em descer da imensa altura que estou, para um lugar mais tranquilo e sem aquela violenta tempestade lá atrás, quando encontro um amplo espaço vazio e azul de céu limpo e claro, eu desço rapidamente entre o espaço, e de uma hora para a outra, uma luz brilhante muito branca me acerta na testa, me desequilibrando totalmente, e eu começo a fazer um espiral violento para baixo, rodando igual ao homem de preto de momentos atrás, eu sacudo os braços tentando me estabilizar no ar enquanto foco no sonho para voltar aos céus, mas aparentemente a lucidez do sonho se foi, vejo o chão se aproximando tão rápido e sem controle, que quando me choco com o solo, sinto um choque tremendo me percorrendo, e acordo em minha cama, tremendo, com a testa úmida e ofegante, olho para um pequeno foco de luz na parede do meu quarto, ainda não amanheceu, mas eu dormi com a televisão ligada, dou um forte suspiro, uau, isso sim é um sonho! Sorrio para mim mesmo.

Apanho o controle ao lado do meu travesseiro, ainda com a luz da televisão iluminando o quarto, pego meu maço de cigarro no móvel de cabeceira, checo quantos ainda têm, tiro de dentro a penúltima unidade, junto com o isqueiro, acendo e desligo a televisão, saindo do meu quarto e subindo para a minha lavanderia por uma escada caracol que acessa o andar superior para fumar e abaixar a adrenalina que ainda sinto pairando no corpo.

Encosto os cotovelos no parapeito enquanto solto fumaça, e encaro a paisagem urbana, que é minha vizinhança. Ouço uma voz experiente e cansada abaixo, e ao olhar, vejo que em frente ao portão da minha vizinha da frente, um homem vestido com um casaco sobretudo encardido e uma cartola completamente esfarrapada pedindo esmola ou ajuda para comer deduzo.

- Senhora, poderia ajudar um velho sem família e faminto por generosidade!

- VÁ EMBORA, NÃO TENHO O QUE TE DAR, MALDITO! – Ouço minha vizinha gritando de dentro da casa subterrânea dela, e ouço um barulho forte de porta batendo.

Sinto meu coração acelerando, nossa! Nunca a ouvi sendo grossa dessa maneira, o homem começa a se mover saindo do portão...

- Hey! Senhor! – Chamo da minha laje debruçando-me sobre o muro baixo. – Espere um minuto.

Vejo o homem ficar imóvel, ele se ajoelha em frente ao portão, aparenta estar sem energia para manter-se de pé... Corro escadaria abaixo, desço mais um lance de escadas para a minha sala de jantar, pego apressadamente um pacote de bolacha no armário, duas caixinhas de achocolatado pronto, e corro para a minha porta, destranco tiro a chave e destranco meu portão externo.

O homem está de costas para mim, debruçado e arfando nervosamente, me aproximo dele colocando minha mão sobre o seu ombro direito.

- Aqui, é pouco, mas pode te ajudar...

- Claro! – O homem me corta, e eu sinto seu ombro tremendo, me aproximo um pouco mais, e quando desencosto minha mão do ombro, ele se vira para mim, apanhando meu braço com força, e quando termina de se virar, ficando completamente de frente para mim, sua cartola cai de sua cabeça, revelando seu rosto, que não dá nem para absolver, ele não tem boca, os olhos são completamente negros com círculos brancos no lugar das íris e com rasgos como se fossem feitos por laminas finas que vão das pálpebras inferiores até perto de onde deveria haver uma boca, os olhos frios e demoníacos me fitam com psicopatia, no meio da testa há um rasgo vertical, igual aos cortes abaixo dos olhos.

- Sua generosidade é admirável rapaz! – Ele diz, e a velhice do seu timbre desaparece, dando lugar a um deboche e uma gargalhada desumana que faz minha garganta ficar fria no mesmo momento.

Uma linha fina aparece no lugar onde sua boca deveria ser, e um sorriso começa a rasgar sua face, exibindo dentes desnivelados e grotescos, ao mesmo tempo uma fenda aparece onde havia o remendo na testa dele, e ao rasgar da pele um olho sombrio começa a saltar de dentro, me congelando de medo por inteiro.

Eu tento soltar meu braço puxando com força, mas meus nervos estão completamente rígidos, e eu não sinto meu braço, sinto um calafrio percorrer meu corpo todo quando ao nosso redor, as casas vão ficando vermelhas, com aparência de destruída e o ambiente começa a esquentar como se estivéssemos dentro de um forno industrial ligado.

Tento desviar os olhos do rosto do homem, mas até minha capacidade de piscar desapareceu, a mão sobre a minha começa a crescer e o homem junto com ela, ele coloca a mão livre no meu pescoço e aproxima o rosto inumano do meu, sinto meus pés queimando, e quando ele aproxima o rosto do meu, ele abre a boca rasgada, que agora fica com pelo menos quatro vezes o tamanho de abertura, sua língua é pontiaguda e bifurcada, o homem que agora parece mais a mistura de um demônio com um lagarto, sorri para mim, eu sem entender nada, fico imóvel, sentindo que minhas calças estão molhando, pois sinto mesmo que estou me mijando, solto o pacote de bolacha e os achocolatados, ouvindo um barulho de fervura e um cheiro horrível de plástico queimado quando eles atingem o chão.

O terceiro olho dele fica vermelho e começa a escorrer sangue de dentro, fazendo caminhos pela sua face, o sangue pinga no chão, e ao acontecer isso, o chão começa a tremer, e as casas vão desmoronando ao redor, tento olhar para a minha casa, mas é inútil, o terceiro olho dele me mantem fixado em seu interior, uma luz dourada ilumina o rosto desfigurado dele vindo de trás de mim, seus olhos se voltam para a luz que não consigo saber o que é, mas aparenta ser um sol que se adiantou no seu nascimento.

- Anjos no meu domínio?! – Ele grita e me solta de repente dando um passo para trás e ao fazer isso, sinto mãos tocando meus ombros, meus pés deixam o chão, e como no sonho, sinto muito frio na barriga, eu sou puxado para cima sentindo meu corpo leve como uma pena. Ouço um sussurro em uma língua estranha que mais parece um chiado cheio de eco metálico, e aos poucos sou içado no ar até a minha lavanderia, conforme vou subindo, o ambiente vermelho e pós-apocalíptico vai voltando ao normal, o homem vai se tornando pequeno e voltando a sua forma menos demoníaca.

- Seu terceiro olho é mais forte que o meu, me perdoe meu senhor! – Ele diz e em seguida desaparece diante dos meus olhos, eu tento olhar para cima, para ver o que está me puxando, mas só vejo uma forte luz que quase me cega por completo, de repente a força que me puxa desaparece e eu despenco em direção ao telhado da minha lavanderia, e antes do choque, meu corpo atravessa a construção, a laje, o teto do meu quarto e eu ouço as pernas da minha cama rangendo quando meu corpo se choca de lado com violência na superfície do colchão.

Eu acordo de supetão, e ao fazer isso, sinto o peso de um corpo pesado se deitando e encostando no meu dorso, tremendo e completamente em choque, eu junto forças para me virar rápido para encarar o que se deitou ao meu lado na cama, mas com a respiração pesada, mesmo sentindo uma presença próxima a mim, eu não me viro, eu ouço uma respiração leve e próxima a minha nuca viro de supetão quando sinto que tenho forças!

E não vejo nada além da parede azul do meu quarto. Levo minha mão direita ao peito sentindo que meu coração tem em seu interior uma escola inteira de samba.

Olho para a porta aberta do meu quarto, a luz da manhã entra pela abertura da lavanderia e ilumina o corredor que passo para subir a escada caracol. Sentindo meu coração na garganta, levanto apressadamente e apanho meu maço de cigarros e o isqueiro ao lado.

Subo para a lavanderia a passos largos, encaro a rua abaixo buscando entender o que diabos foi esse segundo sonho, mas não tenho explicação alguma... Abro meu maço e tiro de dentro um cigarro, acendo-o com os dedos trêmulos e frios.

Solto a primeira baforada e fico encarando o portão da casa da vizinha fixamente, a rua está completamente vazia, e só de lembrar desse sonho bizarro, sinto meu estômago congelado. Levo o cigarro à boca, mas o nervosismo e tremedeira me fazem esbarrar o filtro nos lábios e ele cai no chão da rua.

- Merda! – Encaro o cigarro ainda aceso rolando rua abaixo e parando numa poça de água parada poucos metros abaixo.

Com as mãos ainda tremendo, abro novamente o maço vasculhando seu interior, e para minha triste e caótica surpresa, ele está vazio... Vazio!



Fim.


92 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
Post: Blog2_Post
bottom of page