Mãe Marfim
Ela havia acabado de receber mais um prêmio de medicina, em apenas um ano após a fundação da sua empresa ortopédica, começou a acumular prêmios e não parou mais, era mais um título relevante, que dificilmente seria contestado, o apelido dela no meio médico era “Mãe”, uma mulher fantástica e extremamente inteligente, formada em odontologia e posteriormente em medicina ortopédica, psicologia e logo em seguida a pediatria foi seu alvo, e o encanto daquela área, germinou em sua mente a luz de algo que iria fazer dela uma das maiores empresarias do mundo, e junto com isso, a glória de ser reconhecida também como a médica mais jovem a receber o Nobel de medicina da história.
A ideia em sua mente era visionária, mudaria milhares ou milhões de vidas, depois de alguns meses desenvolvendo seus produtos, ela encontrou a matéria prima perfeita para utilizar em suas criações.
- Doutora? – A voz do motorista a trouxe do seu devaneio, da sua preocupação, ela tinha um contrato fechado para novas peças, com urgência, e ela não tinha material suficiente para a criação de tanto. – ela achou mais uma fonte, e está indo para a clínica com ela.
A Mãe deu um sorriso contido, aquela notícia era um alivio imenso. Cada fonte encontrada era sempre uma bênção, encontrar elas pelo mundo era algo complicado, e cada fonte era suficiente para criar pelo menos cem peças.
- Onde ela encontrou? – Perguntou ela colocando o livro de suspense que lia de lado, e encarou o motorista pelo retrovisor.
- Ela disse que foi no mesmo lugar de sempre, só que uma área ainda não mapeada, bem mais ao fundo da tal floresta. – O motorista parou no farol. Sua mente estava emaranhada, mas ele não costumava questionar a patroa, ele só sabia o básico de tudo que se referia aos trabalhos dela, era uma mulher pouco acessível, e com muitas teorias rondando-a, tanto por parte do público quanto no meio empresarial.
- Ela chegou a falar algo sobre a qualidade? – Perguntou a Mãe.
O homem puxou da mente fazendo uma pausa, e só recobrando a consciência e a resposta da pergunta, quando um motorista atrás buzinou para que ele se movesse, o carro de trás ultrapassou o carro deles, ela ouviu um: “Ô filho da puta, presta atenção no trânsito!”. Saindo do carro vizinho...
- Ela disse algo sim, falou que a fonte é perfeita para alguns anos de extração, talvez.
- Anos?... Uau, isso é perfeito! – A mãe deu um imenso sorriso. – Vamos direto para a clínica, por favor.
- Mas, o seu marido...
- Eu envio mensagem para ele me buscar lá mais tarde, não se preocupe com isso.
O motorista apenas assentiu e mudou a rota no GPS. Ele via pelo retrovisor que a mulher estava animada, nunca havia visto uma expressão tão positiva no semblante da patroa.
Chegando a clínica, ela saiu do carro, dispensou o motorista, e entrou apressadamente no seu local de trabalho. Por fora o lugar era simples e nada chamativo, e por dentro era como um verdadeiro paraíso sinistro, com diversos e diversos manequins pequenos e mutilados, faltando diferentes partes dos corpos de plástico, encostados em paredes de vidro com inúmeras anotações científicas e analíticas escritas por canetões e marcadores de textos.
Ela se dirigiu para o seu escritório ao fundo da sala dos bonecos, era um ambiente claro, exageradamente limpo, e muito tranquilo.
Ali ela criava as novas próteses para tratamentos de má formação infantil e acidentes que acabaram desgraçando os destinos de crianças, e alguns poucos adultos ao redor do mundo. Ela dava total preferência para tratar crianças e adolescentes, já que era melhor comprovar a eficácia do que ela fazia desenvolvendo seus serviços em pessoas mais jovens e em fase de desenvolvimento, mas ora ou outra, algum excêntrico bilionário acidentado e infeliz aparecia, oferecendo pela desconhecida tecnologia da mulher, de trinta a cinquenta vezes mais o valor do produto final, tudo por uma chance de não depender de ninguém nos anos de vida que lhe restavam.
Dependendo do estado físico de quem a procurava, a Mãe dedicava um tempo a mais para os desenvolvimentos específicos dessas peças a mais, e claro, com a super faturação dessas próteses, ela conseguia equilibrar os valores das peças principais, de modo que o consumidor menos favorecido monetariamente, também pudesse ter acesso ao que ela produzia.
Por sorte ou destino, muitos bilionários a procuravam, justamente por que o que ela oferecia era insubstituível.
A porta do escritório se abriu, ela olhou para Telma, que estava na entrada, ela abriu um sorriso gentil.
- Boa tarde Mãe, eu acabei de deixar a fonte no porão. Se quiser dar uma olhada...
- Claro, claro, mas antes, preciso conversar com você Telma. – A Mãe fez um gesto com a mão para que ela se sentasse na cadeira em frente.
A mulher de traços asiáticos se sentou encarando os olhos serenos e castanhos claros da patroa. Seus olhos combinavam muito com os cabelos muito pretos, bem cuidados e compridos da mulher, suas roupas sociais davam um ar imponente e a presença da Mãe era muito reconfortante para pessoas como Telma.
- Tom me disse que você encontrou uma fonte “quase perfeita”... Converse comigo, como conseguiu?
- Bem, a senhora tem certeza de que quer saber?
- Telma... Você sabe que sim, não é todo dia que encontramos fontes dessa natureza. São todos de leite?
- Sim, todos de leite, embora tenha uns dez anos talvez, todos em perfeitas condições, eu o encontrei numa cabana linda, muito para dentro da floresta em um dos bosques mais ao fundo, é um menino astuto, havia me dito que o pai conversava muito com ele para não aceitar coisas de estranhos, não tive dificuldade em hipnotizar e sedar...
- Sedar? O trouxe vivo?
Telma assentiu, a Mãe sentiu o coração acelerando, isso poderia ser um novo avanço para ela, nunca havia trabalhado com matéria viva... Ela sentiu os olhos brilhando.
- O que fez com o pai? – Perguntou de imediato a Mãe.
- Não fiz nada, o homem saiu para buscar lenha, havia saído há pouco, e como a região em que vivem, é uma das partes em que as árvores se mexem, não teria como ele estar por perto, é uma região difícil de lidar com a flora. Foi uma presa fácil.
A Mãe lambeu os lábios, se sentia excitada, se lembrava da primeira vez que esteve pelos bosques daquela região, era lindo, e ali durante um período de férias com o marido, encontrou num momento de loucura o que a possibilitou construir a primeira prótese de sua vida, prótese essa que foi dada de presente para Telma, na época com cinco anos de idade. Hoje uma mulher com mais de vinte anos.
Naquela época a Mãe havia encontrado um crânio infantil, muito parecido com o de um humano, quase completamente despedaçado com todos os dentes de leite e permanentes ainda na maxila do pobre infeliz, ela estava desesperada para encontrar algo naquela região que fosse capaz de fazer o que ela desejava, e com a ideia simplesmente maluca de usar os dentes daquele crânio na construção da primeira prótese, ela chegou a um resultado que nem em seus melhores sonhos teria encontrado.
Quando voltou das férias e chegou ao seu consultório de odontologia quase falido, lá estava; Telma, com um aparelho dental enorme que precisava de manutenção, a Mãe adorava àquela paciente, quando via o nome dela na agenda, ela logo fazia questão de desmarcar os outros pacientes já que aquela menina demandava muito mais tempo para ser atendida, afinal de contas; a falta de ambas as pernas dela do meio das coxas para baixo, fazia com que manusear aquela paciente fosse muito complexo, por ironia do destino a Mãe teve a brilhante ideia de usar numa prótese de perna um pouco do material encontrado, e cedeu outra prótese comum, para a outra perna da menina, para a família de Telma.
Com o passar dos anos, Telma voltava anualmente para a medição e manutenção das próteses, e estranhamente a prótese com o material do crânio encontrado; não só estava intacta e sem danos, como acompanhava o crescimento biológico e natural da menina, após alguns estudos mais aprofundados no que estava acontecendo com a prótese de Telma, a Mãe buscou a origem do crânio em questão.
Nas pesquisas pelo jornal Visser da região do bosque, ela buscava noticias sobre os mortos e acidentados dali, pelas histórias macabras que lia, chegou à conclusão de que o crânio que havia encontrado pertencia a uma criança que havia sido sequestrada e assassinada por um caçador maníaco que residia por ali. Estranhamente o homem maluco dizia que a criança era filha de um demônio, que não merecia viver, que a havia encontrado abandonada ao pé de uma arvore sombria com um pedaço de carne de cervo entre os dentes afiados e pequenos.
Tratado como louco, o caçador foi sentenciado à morte, a criança nunca fora encontrada, pois os boatos e fatos de que as árvores daquela região se moviam misteriosamente, tornaram a busca pelo corpo da criança algo próximo ao impossível por anos a fio, até que os boatos da floresta misteriosa chegaram ao marido da Mãe, o que os levou até ali na temporada de férias, o marido dela era fascinado por histórias macabras, e ela seguia o embalo dele, sendo amante de histórias sombrias, e então tudo aconteceu, ali ela encontrou o crânio, e com as pesquisas avançando positivamente, ela chegou às belas conclusões que a tornaram quem ela é.
- Acho que faz tempo que não te pergunto como vão as pernas Telma... – Disse ela enquanto enrolava uma mecha do cabelo com o indicador.
Telma olhou com simpatia para a Mãe.
- Estão como sempre Mãe. Em perfeitas condições e evoluindo comigo!
A doutora encarou o semblante de satisfação de Telma, por mais que ela soubesse que era uma resposta sincera, ela sentiu um pouco de tristeza pelo que obrigava a funcionária a fazer sobre influência pesada de hipnose sombria.
Telma se levantou da cadeira.
- Vá ver o menino, se não precisa mais de mim, estou indo nessa.
- Sim, irei vê-lo antes de ir embora. Meu marido ontem atacou de maluco, e acredita que ele raspou a cabeça do nada?
Telma soltou uma gargalhada tímida.
- Não me surpreendo com mais nada por parte dele, desde a crise de riso que ele teve naquele caso do interprete maluco da caneta.
A Mãe riu se lembrando do episódio, enquanto se levantava, ia tentando disfarçar o riso, por que não foi apenas o marido que riu igual um lunático naquele dia, pois ela estava se segurando com força para não acompanhar o marido na gargalhada desenfreada.
Telma saiu da clínica acenando para a Mãe, ela mandou um beijo com a mão quando a funcionária entrou no seu carro e saiu da faixada.
Ela se virou para o fundo do corredor, entrou na porta que dava para o refeitório da clínica, lá ela entrou num vão na parede entre a pia e a geladeira que revelava uma passagem secreta para quem conhecesse o botão embaixo do mármore da pia na parte de trás da pedra, além de difícil acesso, apenas duas digitais destravavam o acesso à porta do porão.
Ela desceu um pequeno lance de escadas, o porão era bem iluminado e parecia uma réplica perfeita do seu escritório, com a diferença de que ali, ao invés de uma mesa de escritório, havia uma mesa cirúrgica de alumínio, um criado mudo alto de alumínio com gavetas cumpridas. Sobre a mesa havia um garoto de cabelos pretos e jogados sobre o rosto, estava deitado vestido com roupas brancas e com os pés e pulsos amarrados por fios de aço e prata.
Se aproximando timidamente do garoto ela observou com calma a aparência serena que a sedação pesada causava nele. Ela colocou uma luva descartável na mão direita e foi até o inconsciente menino.
Colocou a mão enluvada nos lábios dele, abriu uma fresta, e notou que os dentes do menino realmente eram de leite, um imenso sorriso se formou em sua face. Ela abriu mais a boca dele verificando todos os dentes com atenção.
- Você será mesmo uma fonte para ser usado durante um bom tempo meu menino.
Ela apanhou um pequeno alicate pontudo na gaveta do criado mudo, voltou ao menino, abriu novamente a boca sedada encaixou a ponta do alicate no dente incisivo central dele, pressionou com força o cabo do alicate vendo as pontas dos dedos dela ficaram brancas, e após alguma pressão o dente trincou, ela conseguiu arrancar um pedacinho dele, ela levantou o lábio superior do menino um pouco mais, e como mágica, o dente trincado e lascado começou a ficar inteiro. Ela sorriu, não sabia por quanto tempo poderia usar aquele menino, mas se os de leite eram assim, imaginava a imensa qualidade dos dentes permanentes.
- Amanhã eu descubro sua origem meu menino. Não sei de que criatura sombria você veio, mas a Mãe irá cuidar bem de você... – Ela notou um pequeno pedaço de papel próximo à cabeça do menino, no papel havia um nome escrito e borrado na caligrafia de Telma. – Gus...
O celular dela vibrou dentro do sutiã, ela o pegou desajeitadamente.
- Alô.
- Estou aqui na frente amor, tem algum tubo de gás do riso por aí?
Ela olhou a sua volta.
- Não meu bem, mas podemos passar no distribuidor para pegar alguns.
- Ah sim, ótimo, vai demorar aí?
- Não, já estou saindo. – Ela saiu do porão, fechou a porta secreta, apagou a luz do refeitório e se dirigiu para a saída, passando pelos manequins infantis.
- A Mãe irá te dar um destino melhor do que ser filho de um demônio aleatório! – Sussurrou para si, e saiu da clínica, trancando a porta e sorrindo para o marido que a aguardava no carro em frente.
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