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A Morte do Palhaço da Alvorada

Atualizado: 27 de abr. de 2021

Nota: O Conto a seguir é uma Obra de ficção voltada ao público adulto, os acontecimentos nele existentes não estão disponibilizados com o intuito de influenciar atos de violência de quaisquer naturezas. Espero que possam apreciar o texto. Boa leitura Att. Neres


Em Memória de G.F e J.P.M


A Morte do Palhaço da Alvorada

O Dr. J.J da Silva Xavier corria para a sala espelhada da delegacia onde seu cliente o estava aguardando para dar seu depoimento após o ocorrido... O engravatado suava intensamente como nunca antes, nem mesmo durante suas corridas matinais suava tanto, a barba cheia e os longos cabelos amarrados num rabo de cavalo estavam mais quentes que o normal... Enquanto corria procurando a sala, revivia mentalmente sua manhã tranquila até então.

Ele estava em sua casa, curtindo o dia de folga após ter chegado do dentista, longe dos telefones e tomando uma garrafa de cerveja enquanto acendia um cigarro que esperara a semana inteira para poder acender. Enquanto o filme Ele está de Volta passava na televisão naquela manhã de domingo, a programação foi interrompida para uma rápida aparição política do responsável geral do país, em pleno pronunciamento ao vivo, que naquele momento passava pelas maiores emissoras do país, ele ouvia as palavras fortes do pritesende. Enquanto prestava atenção no canto inferior direito da tela, ele reconheceu no interprete de libras um de seus clientes, fazendo sinais com as mãos enquanto uma legenda branca acompanhava os sinais e as palavras do homem grisalho com voz de imponência e trejeitos demais nas entonações, estava usando um terno azul marinho elegante e bem passado, a gravata vermelha no colarinho estava perfeitamente alinhada. O homem sentado na confortável poltrona de casa entendia pouco de libras, mas o que tinha conhecimento sobre a língua de sinais era suficiente para rir com a completa diferença do que o político falava com o que o intérprete sinalizava…

O advogado passou por um corredor vazio, fez uma curva para a direita, enquanto passava por uma porta que dava para a saída do prédio, ouviu gritos altos, contínuos e carregados de sentimentos de todos os tipos, ouvia também fogos de artifício sendo estourados como se tivesse uma tempestade de trovões lá fora.

Ao mesmo tempo em que era estimulante ouvir aquilo, também era medonho saber o porquê daquilo tudo estar acontecendo, ele seguiu seu caminho para um novo corredor à direita, avistou no fim dele um homem enorme e fardado que guardava uma porta de madeira branca e maçaneta prateada, no centro da porta uma placa de madeira preta com as palavras: “Sala de Interrogação" no centro.

A delegacia estava vazia, tinha sido completamente evacuada por mandato judicial supremo, talvez no interior do prédio inteiro só tivesse quatro ou cinco pessoas, já do lado de fora, os jornalistas se acumulavam como formigas em um pirulito esquecido por uma criança num quintal de terra, queriam o furo, buscavam incessantes pela primeira informação oficial depois do ocorrido. Todo o corpo policial estava lá fora, impedindo que intrusos da imprensa, da população e até mesmo outros policiais não requisitados de entrar no prédio, a tropa de choque e a cavalaria tinham sido chamadas, e também estavam ao redor da instalação dando guarnição. A delegacia mais parecida um presídio de segurança máxima do que um simples DP voltado para problemas domésticos e causas de pequenas proporções.

O advogado chegou ao fundo do corredor, cumprimentou o policial que guardava a sala com um "Bom dia, meu cliente me aguarda" nervoso, o policial deu passagem para o homem dando um leve sorriso para ele e um olhar de satisfação que o advogado no auge dos seus 45 anos nunca havia visto antes.

J.J entrou na sala espelhada, e lá estava sentado seu cliente, a mesma roupa social que usava mais cedo na televisão ainda em seu corpo, amassada e um pouco suja, mas sem rasgos ou marcas de violência. O homem estava aparentemente inteiro, e isso já era uma boa notícia.

A notícia jornalística provavelmente já havia rodado o mundo inteiro, o nome de seu cliente; Manuel F. Congo, intérprete de libras que estava trabalhando para passar aos deficientes auditivos as palavras do pritesende da república do país, provavelmente já estava na boca de todos, e impresso em inúmeros jornais e em matérias de sites de notícias ao redor do mundo... Ou sendo ovacionado, ou sendo odiado.

- Homem… – O cliente levantou os olhos da mesa de alumínio na qual mantinha as mãos avermelhadas em repouso para o seu advogado. – Você enlouqueceu?!

O cliente não respondeu, tinha uma expressão neutra e fria no rosto branco e os olhos azuis estavam brilhantes, era jovem, tinha cabelos negros e encaracolados, estava com o rosto respingado de sangue ainda. O advogado não sabia o que dizer, não tinha ideia de como trabalharia naquele caso, não sabia como livraria seu cliente daquela acusação, nem se precisaria fazer isso, porque aparentemente ele não iria conseguir, por maiores que fossem seus esforços... O homem de social afrouxou a gravata do colarinho.

O cliente pigarreou chamando a atenção do advogado.

- Posso fazer um pedido J.J? - perguntou ele.

- Não sei Congo... - respondeu o advogado. – Sua situação é complicada... O que seria?

O cliente deu um sorriso carismático e leve para o seu advogado...

- Eu só quero pedir… para assinar qualquer documento que vier para mim, usando minha caneta da sorte, por favor?

O advogado sentiu um embolo frio descer na garganta, ele sentia uma faixa de suor crescer em sua testa, J.J lembrou-se instantaneamente do fato que o fez estar ali naquele momento de quase tarde de domingo.

… J.J deu um forte trago no seu cigarro e um bom gole na cerveja gelada...

Durante o discurso, na transição de sinais entre as palavras "regime" e "fascismo" que o pritesende acabara de falar, o intérprete sacou do bolso do paletó uma caneta retrátil de bronze, desferiu diversos golpes com a ponta dela para fora no pescoço do homem que falava olhando para a câmera, e antes que os seguranças ao redor pudessem fazer alguma coisa, o senhor governador geral do país jazia morto violentamente no carpete vermelho do estúdio televisivo, esparramado e irreconhecível numa poça de sangue fresco, valendo menos do que um verme.

Morto enquanto discursava para seus poucos eleitores favoráveis, e exaltava palavras de ódio, assédio moral, injúrias raciais e de cunho homofóbico, todo o ocorrido foi televisionado para o país inteiro, e posteriormente passado para os países vizinhos, em menos de cinco minutos após o ocorrido, interpretaram a última frase gesticulada por Manuel F. Congo: "Não Conseguimos Respirar.", E depois de "dizer" isso, ele fez o que fez.

Naquele instante, o jovem de idade desconhecida se tornou um símbolo, uma bandeira, um demônio e ao mesmo tempo um deus, não houve se quer uma pessoa que ficou dentro de sua casa após a programação ser interrompida às pressas pela produção do evento, até o mais velho dos idosos e o mais jovem dos adolescentes tomou a rua para ouvir o estouro dos fogos que inundaram os céus com cores e luzes de todo o espectro visível da luz.

O advogado olhou para o seu cliente, sabia que era daquela icônica caneta que ele estava falando, com toda certeza ele não poderia negar um pedido tão simples, ainda mais para um homem que se tornara de uma hora para outra o famoso assassino do "Palhaço da Alvorada". Como era chamado carinhosamente e de modo debochado, o pritesende.

.MIF

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